Os problemas da amizade (Artur Schopenhauer)

 O ser humano de natureza nobre na idade juvenil acredita que as relações essenciais e decisivas, assim como os vínculos que delas nascem entre os homens, são aquelas ideais, isto é, baseadas na afinidade da maneira de sentir e de pensar, no gosto, nas energias espirituais etc. Mais tarde, porém, percebe que, ao contrário, são os relacionamentos reais, ou seja, aqueles que se apóiam sobre algum interesse material. Tais relações estão na base de quase todos os vínculos entre as pessoas: aliás, a maioria dos homens não tem sequer alguma idéia de outra espécie de relacionamentos. Por conseguinte, cada indivíduo será considerado segundo o seu ofício, a sua profissão, ou mesmo segundo a sua nacionalidade e a sua família, ou seja, em geral, segundo a posição e a dignidade que a convenção humana lhe deu: segundo tais princípios ele é classificado e tratado como um objeto comercial. Pelo contrário, aquilo que ele é de per si e por si próprio, como homem, através de suas qualidades pessoais, é considerado só por acaso, e portanto por exceção, e será posto de lado e ignorado por todos, tão logo seja oportuno fazer isso, isto é, na maioria dos casos. Por conseguinte, quanto mais um indivíduo possui qualidades pessoais, tanto menos ele conseguirá adaptar-se ao sistema do mundo, e por isso vai tentar escapar de tal dominação. Tal sistema todavia se baseia no fato de que neste mundo cheio de dor e de necessidade os meios para opor-se à miséria representam em toda a parte o essencial, isto é, na medida em que há um interesse predominante.

Do mesmo modo que o papel-moeda substitui a prata, assim também no mundo, em lugar do verdadeiro respeito e da verdadeira amizade, estão em circulação as demonstrações exteriores e os gestos destes sentimentos, imitados da maneira mais natural possível. Entretanto, podemos por outro lado nos perguntar também se afinal há indivíduos que mereçam realmente tal respeito e tal amizade. De qualquer forma, de minha parte, eu dou mais importância ao balançar do rabo de um cachorro honesto do que a centenas de tais demonstrações e atitudes.

A amizade verdadeira e autêntica pressupõe uma participação sentida, simplesmente objetiva e totalmente desinteressada, nas alegrias e nas dores de uma outra pessoa, ou seja, uma participação que, por sua vez, se baseie numa verdadeira identificação com o amigo. Por outro lado, o egoísmo da natureza humana é tão contrário a isso tudo, que a verdadeira amizade parece pertencer àquelas coisas que não se sabe se são lendárias, como aquelas colossais serpentes marinhas, ou se realmente existem em algum lugar. Todavia, existem relacionamentos entre os homens, certamente baseados na essência em motivos egoísticos ocultos de natureza a mais diversa, que entretanto sob várias formas possuem uma parcela daquela verdadeira e autêntica amizade. Desse modo tais relacionamentos são tão nobilitados, a ponto de poder receber com alguma justificação, neste mundo de imperfeições, o nome de amizade. Por isso tais vínculos são postos acima das relações cotidianas; no que diz respeito a essas relações, a verdade é que nós nunca mais trocaríamos sequer uma palavra com a maioria dos nossos vizinhos, se escutássemos o que eles falam de nós na nossa ausência.

A melhor ocasião para provar a autenticidade de um amigo, além dos casos em que precisamos de uma ajuda séria e de um sacrifício relevante, ocorre no momento em que lhe comunicamos uma desgraça, que há pouco acabou nos atingindo. Neste caso, ou uma aflição verdadeira, sentida e evidente fica gravada nos traços do seu rosto, ou tais traços confirmam, através da sua perfeita impassibilidade, ou com um movimento fugidio, a conhecida sentença de Rochefoucauld: "dans l'adversité de nos meilleurs amis, nous trouvons toujours quelque chose qui ne nous déplait pas". Os assim ditos amigos, aqueles co-muns, nessas circunstâncias às vezes com dificuldade conseguem reprimir o aceno instintivo a um leve sorriso de satisfação. Na verdade, há poucas coisas, que provocam em certos indivíduos tanto bom humor, quanto o fato de narrar-lhes uma desgraça notável, com que alguém foi atingido pouco antes, ou revelar-lhes com sinceridade uma fraqueza pessoal qualquer. Isso é realmente sintomático!

A distância e a ausência prolongada prejudicam de fato qualquer amizade, apesar de admitir isso tão a contragosto. Os laços que temos com pessoas que deixamos de ver durante longo tempo, mesmo no caso que fossem nossos amigos mais que-ridos, com o passar dos anos, vão se ressecando um pouco por vez até se tornarem simples lembranças, a ponto de o nosso interesse por eles se tornar cada vez mais um simples conceito racional, ou tradicional. De fato, a participação viva e profundamente sentida fica reservada apenas aos amigos que temos diante dos nossos olhos, mesmo que sejam simplesmente animais de esti-mação. Até este ponto, de fato, a natureza humana está ligada aos sentidos. Desse modo é confirmado também neste sentido o ditado de Goethe em Tasso (ato IV, scena 4):

O presente é um deus poderoso.

Certas pessoas, com razão são chamadas, na maioria dos casos, de amigos de casa, porque eles são mais os amigos da casa do que do patrão, isto é, são mais parecidos com os gatos do que com os cachorros.

Fala-se que os amigos são sinceros, mas na realidade sinceros são os inimigos. Seria oportuno, portanto, utilizar a censura destes últimos, apesar de ser um remédio amargo, para conhecer a si próprio.

Acaso os amigos em dificuldade são raros? Pelo contrário! Pois, tão logo se acaba de fazer amizade com alguém, este já passa dificuldades e quer receber dinheiro emprestado.


(ARTUR SCHOPENHAUER, Aforismos sobre a sabedoria da vida, em ID., Parerga e paralipomena, ed. por Giorgio Colli, Adelphi, Milão 1962, vol. I, p. 619-622 (32).


texto retirado do livro Amizade & Filósofos, organizado por Massimo Baldini (Bauru, SP: Edusc, 2000, p.108-114)

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