Como Retirar Benefício dos Inimigos (Plutarco)
E se tu fores levado a censurá-lo, evita ao máximo que aquilo que tu reprovas se identifique contigo.
Penetra na tua alma, examina as tuas fragilidades, não te vá acontecer que, vinda de algum lado, uma falha te sussurre aquele verso da tragédia:
És médico dos outros, quando estás tu próprio coberto de feridas (Eurípides).
Se dizes que ele é inculto, reforça em ti o empenho de aprender e o amor pelo trabalho. Se afirmas que ele é covarde, estimula ainda mais em ti a audácia e a valentia. Se é licencioso e destemperado, extrai da tua alma qualquer vestígio de apego ao prazer que te tenha passado despercebido. É que não há nada de mais vergonhoso nem de mais lamentável do que a acusação que retorna sobre quem a lançou. Assim como o reflexo da luz parece atingir com mais intensidade quem tem a vista fraca, também as críticas, por serem verdade, tombam com maior contundência sobre os seus autores.
De fato, tal como o vento do Norte atrai as nuvens, uma vida dissoluta atrai sobre si mesma as censuras. Platão, sempre que se encontrava com homens de conduta inconveniente, costumava perguntar a si próprio:
Acaso não sou como eles?
Mas o homem que, depois de criticar a vida de outro, imediatamente examinar a sua própria conduta, e a modifica, corrigindo-a e conduzindo-a na direcção oposta, recolherá das críticas algo de aproveitável, que de outro modo não só dariam o aspecto de ser inúteis e vãs, como o seriam de fato.
[...]
O que nos impede de tomar o inimigo como mestre sem salário, de tirar proveito e de aprender o que não sabemos? A muitas coisas o inimigo é mais sensível do que o amigo, pois “o amante fica cego diante do amado”, como Platão afirma. Ao invés, com o ódio, vêm associadas em conjunto a indiscrição e a tagarelice. Hierão foi acusado por um dos seus inimigos de ter mau hálito. Quando entrou em casa, diz à mulher:
O que tens a dizer? - Perguntou - Tu nunca me falaste nada sobre isso.
Ela, então, como era sensata e sem maldade, respondeu: Pensava que todos os homens cheiravam assim. Portanto, os nossos defeitos que são captados pelos sentidos, que são físicos e a todos visíveis, mais cedo são conhecidos pelos inimigos do que pelos amigos ou pelos que nos são próximos.
Mas, tirando à parte estas considerações, o domínio sobre a língua não é uma insignificante componente da virtude, pois nem sempre é possível tê-la controlada e obediente à razão, a não ser alguém que, pelo treino, propósito e aplicação, tenha conseguido domar as piores das paixões, como é, por exemplo, a ira. É que “a palavra que inadvertidamente se solta” e a “palavra que foge da grade dos dentes” e ainda “algumas palavras que por si próprias voam” (Homero), são coisas que ocorrem sobretudo aos que têm um espírito fraco, tais como aqueles que se deixam escorregar, devido a um discernimento pouco disciplinado e se espalham numa conduta errática.
Ora de uma só palavra, a mais leve das realidades, se gera a mais pesada das punições, desferida tanto pelos deuses como pelos homens, afirma o divino Platão.
Já o silêncio, em nenhuma circunstância é chamado a prestar contas (não é apenas bom para a sede, como diz Hipócrates), mas, no que diz respeito aos insultos, revela uma nobreza digna de Sócrates, ou melhor ainda de Hércules, se é verdade que este “fazia tanto caso de comentários raivosos como de uma mosca".
De fato, nada é mais belo e digno de nota do que manter-se impassível diante das injúrias de um inimigo passando pelos insultos como se nadássemos perto de uma pedra lisa, e o melhor é o exercício. Se consegues suportar em silêncio o inimigo que te insulta, seguramente com mais facilidade aguentas a ira da tua mulher quando fala mal de ti, e sem perturbação suportas ouvir as palavras cheias de azedume de um amigo ou de um irmão. Assim te mostrarás imperturbável e sem ressentimento ao teu pai ou à tua mãe, se fores castigado ou repreendido por eles. Por exemplo, Sócrates suportava Xantipa, que era uma mulher dura e irascível, por supor que, se estivesse acostumado a suportá-la, lidaria com os demais com bom ânimo.
Porém, é muito melhor que seja junto de inimigos e de estranhos que ganhes o treino de sofrer vexames, ataques de cólera, falsidades e insultos, e acostumes o espírito a permanecer tranquilo, e a não reagir quando for injuriado.
Bondade e mansidão, eis portanto o que nós devemos mostrar mais com os inimigos do que com os amigos, assim como integridade e grandeza de carácter, bem como disponibilidade. É que não é mais formoso fazer bem a um amigo do que é mais vergonhoso recusar-lhe auxílio, quando ele necessita.
É também a atitude correta deixar passar a vingança sobre um inimigo quando a oportunidade se apresenta. Pois alguém que se compadece do inimigo em queda, e que estende uma mão à sua necessidade, e que dá mostras de generosidade e de interesse pelos seus filhos caídos em privação ou pelos seus assuntos particulares, a este, quem não o admirar pela sua bondade nem o louvar por ser prestável, “tem o negro coração forjado em diamante e em ferro” (Píndaro) .
Quando César ordenou que as estátuas de Pompeu que tinham sido derrubadas fossem novamente levantadas, Cícero afirmou:
Restauraste as estátuas de Pompeu, mas, às tuas, fortaleceste-as.
Pelo que se conclui que não se deve poupar, nem o reconhecimento, nem o louvor de um inimigo, quando este merecidamente granjeou uma boa reputação. É que esta atitude promove o melhor dos louvores aos autores dos elogios, e torna fiável que, noutras alturas em que for feita uma censura, tal ter sido motivado não por ódio ao homem, mas porque se lhe reprovam os atos.
Todavia, o mais belo e o mais proveitoso é que o homem fique absolutamente imune de sentir inveja tanto da felicidade dos amigos como do sucesso dos conhecidos, ao ter adquirido o hábito de louvar os inimigos, de não morder os lábios e de não ficar ressentido quando eles prosperam. E que outro treino pode desenvolver maiores ganhos para a alma, ou um ânimo mais fortalecido, do que aquele que elimina em nós o ciúme e a inveja?
(PLUTARCO, Como Tirar Benefício dos Inimigos. Tradução de Paula Barata dias. Universidade de Coimbra, 2010. Págs. 183-193)
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