O amor platônico

(…) Por mais de uma década, ao dar aula para alunos do Ensino Médio e Superior, eu costumava fazer duas perguntas para as turmas quando falava de Platão:

a) “Quem já ouviu a expressão amor platônico?”

b) “Como você define amor platônico?”

Sem exceção, todos já tinham ouvido a expressão antes, e a maioria definia como uma relação afetiva idealizada, sem dimensão sexual, em que uma das partes não era correspondida.

Mas será que é mesmo essa a correta definição de amor platônico? Vamos retomar a história da expressão e tentar entender por que a ideia do amor idealizado ganhou sentido e ficou tão atrelada a essa expressão. A verdade é que não tem muito a ver com o que dizia Platão.

A expressão apareceu pela primeira vez no século XV. Na Atenas antiga, Platão havia feito o primeiro tratado ocidental sobre o amor. Quando a cultura greco-romana foi recuperada na Europa, na época do Renascimento, filósofos europeus passaram a ler e a debater seus escritos. Foi nesse contexto que o italiano Marsilio Ficino empregou a expressão pela primeira vez para se referir, em meios acadêmicos, ao conceito descrito na obra de Platão.

No século XVII, o poeta inglês Sir William D’Avenant popularizou o sentido de amor não correspondido, de idealização distante e de relação de pouca proximidade. Foi então que o amor platônico foi associado à contemplação da pessoa amada, que é inatingível. Por muito tempo, para falar de amor platônico, lia-se D’Avenant. Ele entendia que o amor não tina a ver com enlace físico, mas sim com uma adoração a um objeto idealizado, quase imaculado.

Entretanto, é preciso olhar de perto o tratado e a filosofia de Platão para entender o que uma coisa tem a ver com a outra e por que se tornaram correlacionadas. Antes de tudo, é importante saber que Platão criou um sistema filosófico comumente chamado de teoria das ideias. Seu objetivo era encontrar a essência de cada coisa, o que a definia enquanto tal. Em outras palavras, Platão não queria descobrir o que era o amor em casos específicos – para um pai, para um filho, para um amante, para uma mulher -, na realidade, ele queria encontrar aquilo que definia o amor em todos esses casos, que unia todas essas experiências, a natureza universal do fenômeno. Para isso, ele escreveu o diálogo O banquete.

Acontece que, no contexto cultural grego, havia três concepções de amor: philia, ágape e eros. A primeira dizia respeito a uma simpatia mútua, como uma amizade; a segunda, ao amor abnegado, altruísta e incondicional; e a terceira, ao amor sensual, que prova êxtase e frenesi quando diante do objeto amado. E é principalmente sobre esse último tipo de amor que escreve Platão.

No diálogo O banquete, por meio de conversas, o filósofo recria um encontro de Sócrates, seu mestre, na casa do grego Agatão. Lá, estavam alguns dos dramaturgos, políticos e sofistas importantes na época: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Alcibíades. Os convidados combinaram que iriam beber e discursar sobre o amor. O mais belo discurso seria aplaudido e o amigo, saudado como um campeão.

O primeiro a discursar foi Fedro, defendendo o sentimento como uma força capaz de mover o céu e a Terra. Para ele, Eros, o deus do amor, era uma velha divindade, responsável por tirar a prudência do amante e fazê-lo mover mundos e fundos para conquistar o objeto amado. O amor, então, transformaria o nada em tudo. Daria sentido ao caótico e ao vazio e à vida de quem é tomado por tal sentimento.

O segundo discurso foi realizado por Pausânias. ao retomar a imagem da deusa Afrodite, defendeu que o amor tem dois aspectos: um espiritual e outro físico. De acordo com ele, o físico se desgastava ao longo do tempo, assim como tudo no mundo material. Porém, o imaterial sobreviveria ao tempo e viveria para todo o sempre.

O terceiro foi Erixímaco, um médico de profissão. Ele concordou com a dualidade do amor, tal como defendido por Pausâmias, mas acreditava que o amor era uma força cósmica presente em tudo o que existe; era o sopro de vida que animava todo ser vivo. E mais: defendia a existência de um amor sadio e um enfermo. O primeiro buscaria coisas boas e belas. O segundo, coisas feias e ruins, como os vícios.

O quarto discurso foi do grande comediógrafo Aristófanes. Em uma bela narrativa, ele explicou como, em tempos imemoriais, as pessoas foram divididas e, então, passaram a viver em busca de sua metade. Essa concepção foi corroborada por exemplos interessantes da própria Grécia Antiga. O mais significativo exemplo tomado foi o relato de que o Batalhão Sagrado de Tebas reunia 150 casais masculinos, organizados pelo comandante Górgias, para que, no campo da batalha, os soldados lutassem com mais ardor porque deveriam proteger o amado, sem o qual não poderia continuar a viver. Outro exemplo oferecido foi o da relação entre o lendário Aquiles e Prótoclo, seu protegido, cuja morte Aquiles vinga depois que Heitor, o príncipe de Troia, deixou seu cadáver sem enterro para ser comido por animais.

Agatão, o polêmico anfitrião, foi quem realizou o quinto discurso, retomando a fala de Fedro. Mas, na sua visão, Eros não era um deus velho, mas sim jovem, alado e cheio de vigor. Agatão fazia referência a Cupido, que lança suas flechas indiscriminadamente e cria paixões sem sentido. Para ele, portanto, o amor não tinha qualquer explicação, mas dava ânimo aos apaixonados.

O próximo a discursar foi Sócrates, o homem que, segundo o Oráculo de Delfos, era o mais sábio de toda a Grécia. O filósofo explicou que aprendeu sua teoria do amor com a sacerdotisa Diotima de Mantineia. De acordo com ela, Eros era filho da deusa da escassez, Pênia, e do deus do recurso, Poros. Do pai, Eros herdou a engenhosidade; da mãe, a incompletude e o desejo insaciável. Grosso modo, nessa teoria, o amor nada mais era do que uma artimanha para buscar aquilo que não temos, o belo e o bom. E, como a coisa mais bela é a sabedoria, o amor estaria sempre em sua busca.

Por fim, o sétimo discurso foi preferido por Alcebíades, discípulo de Sócrates, que nada mais fez do que uma declaração ébria de admiração e amor por seu mestre. O filósofo o repreendeu, pedindo que agisse com moderação. Ao final do diálogo, todos haviam caído no sono, com exceção de Sócrates. E este foi o sinal de que era ele o mais sóbrio dentre os homens e, portanto, suas palavras seriam as mais verdadeiras.

Para Platão, o melhor discurso é justamente o de Sócrates. Porém, se retomarmos os discursos, veremos que, em certa medida, a concepção mais presente de amor nos dias de hoje é a defendida por Aristófanes. Ele apela à nossa sensibilidade romântica, que nos induz a acreditar que só nos sentimos completos quando encontramos a nossa alma gêmea.

Mas Sócrates oferece uma lição muito mais valiosa. Se o amor é a força que nos empurra para o que não temos, e o que não temos é o belo e o bom, e sendo a sabedoria a coisa mais bela que existe, o amor quer mesmo é atingir o conhecimento. Assim, o amor é, antes de tudo, um projeto de investigação. É filosofia.

NOGUEIRA, Renato, Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor, Rio de Janeiro: Harper Collins, 2020.

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