A existência e a morte
Não há incômodo maior do que falar da morte.
Não se fala dela a pessoas muito doentes ou idosas, embora se saiba que ela pode estar próxima. Não se fala dela a crianças, embora se saiba que ela pode estar distante. Também não se fala a quem perdeu um ente querido, embora se saiba que ela está presente.
Não falar da morte, porém, não significa que todas essas pessoas não pensem nela e, acima de tudo, não sejam afetadas por ela. Ou seja, o incômodo estará lá de um jeito ou de outro, porque falar da morte não seria um incômodo se a própria morte não o fosse.
Falar da morte é um incômodo porque sua imagem está aí, assombrando-nos, e falar dela é trazer à tona aquilo que todos carregam em silêncio, como se não falar de um peso em nossas costas pudesse torná-lo mais leve. Mais do que o respeito e a compaixão pelos doentes, crianças ou viúvos, é esse incômodo que inibe a discussão, e essa inibição acabou por constituir-se em um costume bastante difundido nos dias de hoje: evitar falar da morte e, por consequência, evitar refletir sobre ela.
Mas será que em nome de evitar um incômodo ou de cumprir uma regra social de etiqueta devemos renunciar a um assunto que nos atinge a todos? Afinal, mesmo não sendo crianças, nem doentes, nem idosos, nem viúvas ou viúvos, somos todos finitos. Sabemos que nossos dias vão acabar e que nossos projetos, nossos prazeres e nossas relações não podem durar para sempre. Mas também sabemos, de maneira semelhante, que nossas frustrações, nossos sofrimentos e nossas brigas também não durarão para sempre. A questão que se apresenta, portanto, é: vale a pena abandonar a reflexão sobre algo que, queiramos ou não, volta e meia passará por nossa cabeça?
Sabendo que somos incapazes de evitar que a morte nos venha à mente, o que está em questão não é tanto pensar ou não nela, mas de que maneira pensar. Será que ficar à mercê de flashes imaginários assustando-nos inesperadamente aqui e ali é melhor do que refletir individualmente e discutir publicamente a questão?
Se a Filosofia abordou a morte em tantas oportunidades, contrariando a comodidade e por vezes a etiqueta, foi por uma posta de que a reflexão é melhor do que o medo; de que um conceito da morte é melhor do que um fantasma dela. Não se pode dizer que os filósofos derrotaram completamente o medo ou esgotaram a questão, mas suas várias tentativas de refletir deram-nos subsídios para compreender o melhor o mistério que vai continuar nos afligindo enquanto permanecer mistério.
Felizmente, porém, não estamos num “tudo ou nada”. Não há apenas duas alternativas: total compreensão ou total ignorância. Quanto mais compreendermos a morte, menos estaremos sujeitos ao medo e ao incômodo causados por seu fantasma. A aposta na reflexão é o esforço contínuo de tirar o véu do mistério e vê-lo com é. É verdade que há sempre novos véus por baixo dos primeiros, mas a cada vez enxergamos mais nitidamente; e, se ainda não compreendemos totalmente a morte, ao menos compreendemos por que ela nos assusta. Por isso, ficamos mais fortes diante dela. Mais fortes para quê? Paradoxalmente, como veremos, mais fortes para a vida
OLIVA, Luís César. A existência e a morte, Coleção Filosofias: o prazer de pensar, Martins Fontes: São Paulo, 2012.
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