Ética a Nicômaco
Parte 1
Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem .
[...]
Verbalmente, quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o bem agir como ser feliz. Diferem, porém, quanto ao que seja uma felicidade, e o vulgo não o concebe do mesmo modo que as riquezas. Os primeiros pensam que seja alguma riqueza ou as honras, muito embora discordem entre si; e não raro o mesmo homem se identifica com coisas diferentes, com a saúde quando está doente, e com a riqueza quando é pobre. Cônscios da sua própria ignorância, não obstante, admiram aqueles que proclamam algum grande ideal inacessível à sua compreensão. Ora, alguns têm pensado que, à parte desses numerosos bens, existe um outro que é auto-subsistente e também é causa da retenção de todos os demais.
[...]
Voltemos novamente ao bem que estamos procurando e indaguemos o que é ele, pois não se afigura igual nas ações e artes separadas: é diferente na medicina, na estratégia, e em todas as demais artes do mesmo modo. [...] Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. [...]
Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejado no interesse de outra coisa mais absoluto que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como não interesse de uma terceira; [...]
Agora, esse é o conceito que preeminentemente causa felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que um grupo deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.
Parte 2
[...]
Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explique mais claramente o que ela seja.
[...]
A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e mais aprazível coisa do mundo [...] e esses atributos [...] pertencem às mais excelentes atividades , e estas, ou então, uma delas - a melhor -, nós nos identificamos com a felicidade.
E no entanto, como dissemos, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas ações utilizamos como instrumentos os amigos, a riqueza e o poder político; (...)
Como dissemos, pois, o homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; (...)
[...] ela [a felicidade] é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Dos demais bens, alguns devem necessariamente estar presentes como condições prévias de felicidade, e outros são naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos.
[...]
Já que a felicidade é uma atividade da alma conforme a virtude perfeita , devemos considerar a natureza da virtude: pois talvez possamos compreender melhor, por esse meio, a natureza da felicidade.
[...]
a virtude que devemos estudar é, fora de qualquer dúvida, a virtude humana; porque humano era o bem e humano a felicidade que buscávamos. Por virtude humana entendemos não a do corpo, mas a da alma; e também à felicidade chamamos uma atividade da alma.
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, In Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1987.
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