Liberdade em Hannah Arendt

Nascida no século XX, numa família judia, Hannah Arendt viveu duas guerras mundiais; com a chegada de Hitler ao poder, foi forçada a deixar sua terra natal, a Alemanha, e mais tarde o continente europeu, para se exilar nos Estados Unidos. Filósofa e teórica política, a produção intelectual de Hannah Arendt esteve voltada para compreender os fenômenos políticos que viveu e que marcaram sua vida, sobretudo, os horrores do regime nazista.

No ensaio Que é liberdade?, de 1950, Hannah Arendt defende uma noção de liberdade no sentido público em detrimento da liberdade interior e privada. Seu principal objetivo nesse ensaio, é afirmar a ligação entre liberdade e política, uma vez que, para ela, entre todas as atividades humanas, a única que não pode ser concebida sem se admitir a existência da liberdade é a política. Mas, como observa a autora, liberdade e política aparecem como coisas separadas, pois tanto a tradição filosófica quanto as experiências do século XX reforçariam a ideia de que a liberdade começa onde deixamos o espaço público. Para boa parte da tradição filosófica, a liberdade estaria ligada à vontade, ao livre-arbítrio, e seria vivenciada no interior do homem.

Arendt observa que a liberdade só foi incorporada como tema filosófico na Antiguidade tardia, principalmente pelos filósofos estoicos. E isso teria acontecido num contexto histórico em que a liberdade pública havia desaparecido e, por isso, a liberdade teria passado a ser tratada como pertencente ao domínio interno.

“os filósofos começaram a mostrar interesse pelo problema da liberdade quando a liberdade não era mais vivenciada no agir e na associação com outros, mas no querer e no relacionamento com o próprio eu; em resumo, quando a liberdade se tornou livre-arbítrio.” AREDNT, Hannah, Entre o passado e o futuro, O que é liberdade?, São Paulo:Perspectiva, 2016, p.211

De acordo com Arendt, na Grécia Clássica, os gregos teriam experimentado a verdadeira liberdade, no espaço público, liberdade de falar e agir entre iguais, a liberdade política por excelência. Ser livre politicamente significa, para Arendt, potência. Este poder surge somente na esfera pública, quando os homens se unem para agir de comum acordo. Nesse sentido, a liberdade política estaria fundada no “eu posso”, e pertenceria ao cidadão e ao mundo fenomênico, não estaria no Homem, mas entre os homens.

“A polis grega foi outrora precisamente a “forma de governo” que proporcionou aos homens um espaço para aparecimentos onde pudessem agir – uma espécie de anfiteatro onde a liberdade podia aparecer.” AREDNT, Hannah, Entre o passado e o futuro, O que é liberdade?, São Paulo:Perspectiva, 2016, p.201.

Na visão de Arendt, além da tradição filosófica que liga liberdade e interioridade, as experiências do século XX teriam reiterado a separação entre política e liberdade. Os regimes totalitários – nazismo e stalinismo – ao buscarem o domínio total, o controle da vida biológica e social, teriam reforçado a crença de que a política é incompatível com a liberdade. Os horrores resultantes dessas experiências teriam nos levado a duvidar da compatibilidade entre política e liberdade. E, nesse contexto, teria prevalecido a tese liberal de que “quanto menos política, mais liberdade”, como se a liberdade só pudesse ser experimentada fora do âmbito político, nas atividades do indivíduo – atividades econômicas, sociais, liberdade de crença, intelectual e cultural.

Segundo Arendt, devido ao desvio filosófico da ação para a força de vontade, o ideal de liberdade passou a ser um livre-arbítrio, independente e eventualmente prevalecendo sobre os outros, de modo que liberdade e soberania passaram a ser sinônimos. E esse seria, para Arendt, um dos resultados mais perigosos da equação liberdade=livre-arbítrio, pois “conduziria à negação da liberdade humana - quando se percebesse que os homens, façam o que fizerem, jamais serão soberanos – ou à compreensão de que a liberdade de um só homem, de um grupo ou de um organismo político só pode ser adquirida ao preço da liberdade, isto é, da soberania, de todos os demais” (Arendt, p.212-213). Mas, como observa Arendt, “a política baseia-se na pluralidade dos homens”, “trata da convivência entre diferentes”. Ainda nas palavras da autora, “sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e nesse interespaço ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos.” (AREDNT, Hannah, O que é Política?, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017).

 A noção de liberdade discutida por Arendt está ancorada no seu conceito de natalidade. Uma ideia que a autora encontra em Agostinho. Segundo Arendt, na obra A cidade de Deus, Agostinho concebe a liberdade não como uma disposição humana íntima, mas como um caráter da existência humana no mundo: “o homem é livre porque ele é um começo.” E segundo Arendt, “no nascimento de cada homem esse começo inicial é reafirmado” e “porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre é uma única e mesma coisa.” (Arendt, 2016). E é através da ação que os seres humanos podem iniciar algo novo. Enquanto agem, são livres, pois “ser livre e agir são uma mesma coisa.”

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