A Cidade de Deus – Santo Agostinho (Livro 5, Capítulo 1)

 A causa da grandeza do Império Romano não é evidentemente

 fortuita nem fatal no sentido ou opinião dos

que chamam fortuitos aos acontecimentos que não têm

causa ou não provêm de uma ordem racional, e fatais aos

que resultam necessariamente de certa ordem independente

 da vontade de Deus e dos homens. É seguramente a

Providência divina que estabelece os reinos humanos. Se

alguém o atribuir ao destino, chamando «destino» à própria

vontade oui omnipotência de Deus, pois mantenha a sua

opinião mas corrija a linguagem. Porém, porque é que

não diz logo de início o que virá a dizer quando se lhe

perguntar a que é que chama «destino»? Na verdade, quando

a ouvem, os homens tomam esta palavra no sentido usual

e não pensam senão na força da posição dos astros tal qual

como ela se apresenta quando alguém nasce ou é concebido. 

Alguns consideram-na, a essa força, alheia e outros,

subordinada à vontade de Deus. Mas aqueles para quem os

astros decidem, sem a vontade de Deus, do que fazemos

ou dos bens que possuiremos ou dos males que teremos de

suportar, devem ser impedidos de fazer-se ouvir não só

dos que observam a verdadeira religião mas também dos

devotos de qualquer deus, mesmo falso. Na verdade, esta

opinião que mais pretende senão que nenhum deus se

adore nem a ele se dirija a oração? Mas, por ora, 

não é contra os que defendem esta opinião que se dirige a nossa

discussão, mas contra os que, para defenderem os seus pretensos

 deuses atacam a religião cristã.

Aqueles que fazem depender da vontade de Deus a

posição das estrelas que decidem de certo modo do carácter

 de cada um e dos acontecimentos bons ou maus da sua

vida, — se julgam que essas estrelas, que receberam esse

poder do poder supremo, decidem desses acontecimentos

como lhes apetece — grave ofensa fazem ao Céu. Tomam

o Céu por uma espécie de ilustre senado e esplêndida cúria

em que se decide dos crimes que se podem cometer —

crimes esses que, se fosse alguma cidade terrena a votá--los,

 tal cidade teria de ser destruída por decisão do

género humano. Que possibilidade se deixa a Deus, senhor

dos astros e dos homens, para julgar os actos humanos

submetidos à fatalidade dos astros? Ou, se disserem que as

estrelas, tendo recebido do Deus Supremo o seu poder,

não decidem desses crimes segundo seu arbítrio mas se

limitam a executar rigorosamente as suas ordens nas decisões

 fatais que tomam — não será isso atribuir ao próprio

Deus o que pareceu indigno da vontade das estrelas?

Poderão ainda dizer que as estrelas indicam mas não

realizam os acontecimentos. É como se a sua posição fosse

uma linguagem de predizer e não de realizar o futuro (foi

de facto este o parecer de homens não mediocremente

doutos). Não é porém assim que os astrólogos costumam

falar. Não dizem, por exemplo: «esta posição de Marte

anuncia um homicida» mas «faz um homicida». Conceda

mos, porém, que eles não falam como devem e que

deviam tomar dos filósofos a sua maneira de falar para

anunciarem os acontecimentos que julgam descobrir na

posição dos astros. Como é que acontece que nunca puderam

 explicar porque é que na vida dos gémeos, nos seus

actos, nos seus sucessos, nas suas profissões, nas suas habilidades,

 nas suas honras, nos outros acontecimentos que

respeitam à vida humana e na sua própria morte, há tão

grande diversidade, ao ponto de muitos estranhos se parecerem

 mais a gémeos do que estes se parecem um ao

outro, apesar do tão breve intervalo que separa o seu nas

cimento e da sua comum concepção produzida pelo

mesmo acto e no mesmo momento?


(SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução de J. Dias Pereira. - 2ª ed. - Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. )


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