Odisseia - Homero (Canto XIX, versos 103-150)

 Encontro de Penélope e Odisseu 


Veio, então, nela assentar-se Odisseu, sofredor de trabalhos.

Dá logo início ao discurso a sensata e prudente Penélope:

“Ora pretendo fazer-te, estrangeiro, umas tantas perguntas.

Qual o teu povo e o teu nome, teus pais, a cidade em que moras?”

Disse-lhe, então, em resposta, o prudente e sofrido Odisseu:

“Nobre mulher, nenhum homem te pode lançar qualquer pecha,

em toda a terra, por ter atingido tua glória o céu vasto,

como se fora de rei sem defeitos e aos deuses temente,

que sobre muitos e fortes vassalos domínio tivesse

e distribuísse a justiça. O chão negro produz-lhe abundante

trigo e cevada, vergadas de frutos as árvores grandes;

constantemente, lhe dá peixe o mar, as ovelhas dão cria,

pelo governo excelente, feliz encontrando-se o povo.

Por isso mesmo, em tua casa interrogas-me acerca de tudo,

mas não me faças perguntas respeito a meus pais, minha pátria,

para que não me renoves as dores que o peito me oprimem,

com recordá-las. Sou muito infeliz, e não fica decente

em casa alheia me pôr a chorar e contar muitas dores,

pois causa enfado viver sempre a gente a falar em desgraças.

Não aconteça que as servas me façam censura, ou tu própria,

por presumir que a embriaguez é que os olhos me inunda de lágrimas.”

Disse-lhe, então, em resposta, Penélope muito sensata:

“Hóspede, tantas vantagens, a forma do corpo e a beleza,

mas desfizeram os deuses no instante em que os homens Aquivos

como meu esposo Odisseu para Troia, em navio, partiram.

Mas, se ele viesse de novo e pudesse amparar-me, cuidoso,

muito melhor seria e mais fama, também, me coubera.

Ora aflições me acabrunham; demônio funesto me oprime.

Quantos senhores dominam possantes nas ilhas de em torno,

não só em Samo, também em Dulíquio e Zacinto selvosa,

ou mesmo em Ítaca, ao longe visível, o mando repartem,

querem que à força me case, e meus bens, sem cessar, dilapidam.

Esse o motivo de não me importar com mendigos e estranhos,

nem com arautos, que sempre se ocupam nas lides do povo.

Sinto, porém, de Odisseu infinita saudade no peito.

O casamento eles todos exigem; com dolo me escuso.

Primeiramente, um tear construir inspirou-me um dos deuses.

Tendo estendido no quarto uma tela sutil e assaz grande,

pus-me a tecer, enganando-os, depois, com fingidas palavras:

‘Jovens, porque já não vive Odisseu, me quereis como esposa.

Mas não insteis sobre as núpcias, conquanto vos veja impacientes,

té que termine este pano, não vá tanto fio estragar-se,

para a mortalha de Laertes herói, quando a Moira funesta

da Morte assaz dolorosa o colher e fizer extinguir-se.

Que por Aquiva nenhuma jamais censurada me veja

por enterrar sem mortalha quem soube viver na opulência.’

Dessa maneira falei, convencendo-lhes o ânimo altivo.

Passo, depois, a tecer nova tela mui grande, de dia;

à luz dos fachos, porém, pela noite desteço o trabalho.


(HOMERO. A Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2015.)


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