Manifesto Ciborgue - DONNA HARAWAY

Tecnologias de comunicação e as biotecnologias são ferramentas cruciais no processo de remodelação de nossos corpos. Essas ferramentas corporificam e impõem novas relações sociais para as mulheres no mundo todo. As tecnologias e os discursos científicos podem ser parcialmente compreendidos como formalizações, isto é, como momentos congelados das fluidas interações sociais que as constituem, mas eles devem ser vistos também como instrumentos para a imposição de significados. A fronteira entre ferramenta e mito, instrumento e conceito, sistemas históricos de relações sociais e anatomias históricas dos corpos possíveis (incluindo objetos de conhecimento) é permeável. Na verdade, o mito e a ferramenta são mutuamente constituídos. Além disso, as ciências da comunicação e as biologias modernas são construídas por uma operação comum – a tradução do mundo em termos de um problema de codificação, isto é, a busca de uma linguagem comum na qual toda a resistência ao controle instrumental desaparece e toda a heterogeneidade pode ser submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca. Nas ciências da comunicação, podemos ver exemplos dessa tradução do mundo em termos de um problema de codificação nas teorias de sistema cibernéticas (sistemas controlados por meio de feedback) aplicadas à tecnologia telefônica, ao design de computadores, ao emprego de armas de guerra ou à construção e à manutenção de bases de dados. Em cada caso, a solução para as questões-chave repousa em uma teoria da linguagem e do controle; a operação-chave consiste em determinar as taxas, as direções e as probabilidades do fluxo de uma quantidade chamada informação. O mundo é subdividido por fronteiras diferencialmente permeáveis à informação. A informação é apenas aquele tipo de elemento quantificável (unidade, base da unidade) que permite uma tradução universal e, assim, um poder universal sem interferências, isto é, aquilo que se chama de “comunicação eficaz”.


[...] As tecnologias da comunicação dependem da eletrônica. Os estados modernos, as corporações multinacionais, o poder militar, os aparatos do estado de bem-estar, os sistemas de satélite, os processos políticos, a fabricação de nossas imaginações, os sistemas de controle do trabalho, as construções médicas de nossos corpos, a pornografia comercial, a divisão internacional do trabalho e o evangelismo religioso dependem, estreitamente, da eletrônica. A microeletrônica é a base técnica dos simulacros, isto é, de cópias sem originais. A microeletrônica está no centro do processo que faz a tradução do trabalho em termos de robótica e de processamento de texto, do sexo em termos de engenharia genética e de tecnologias reprodutivas e da mente em termos de inteligência artificial e de procedimentos de decisão. As novas biotecnologias têm a ver com mais coisas do que simplesmente reprodução humana. Como uma poderosa ciência da engenharia para redesenhar materiais e processos, a biologia tem implicações revolucionárias para a indústria, talvez mais óbvias hoje em áreas como fermentação, agricultura e energia. As ciências da comunicação e a biologia caracterizam-se como construções de objetos tecnonaturais de conhecimento, nas quais a diferença entre máquina e organismo torna-se totalmente borrada; a mente, o corpo e o instrumento mantêm, entre si, uma relação de grande intimidade.


(HARAWAY, D.J. Manifesto ciborgue in: TADEU, T (org) Antropologia ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. 2009. p. 64 a 67)


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