O Nascimento da Tragédia – NIETZSCHE

Da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento anelante por uma perda irreparável. Naqueles festivais gregos prorrompia como que um traço sentimenta da natureza, como se ela soluçasse por seu despedaçamento em indivíduos. O cântico e a mímica desses entusiastas de tão dúplice disposição eram, para o mundo greco-homérico, algo de novo e inaudito: a música dionisíaca, em particular, excitava nele espantos e pavores. Se a música aparentemente já era conhecida como uma arte apolínea, ela o era apenas, a rigor, enquanto batida ondulante do ritmo, cuja força figuradora foi desenvolvida para a representação de estados apolíneos. A música de Apolo era arquitetura dórica em sons, mas apenas em sons insinuados, como os que são próprios da cítara. Mantinha-se cautelosamente a distância aquele preciso elemento que, não sendo apolíneo, constitui o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral: a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia. No ditirambo dionisíaco o homem é incitado à máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas; algo jamais experimentado empenha-se em exteriorizar-se, a destruição do véu de Maia, o ser uno enquanto gênio da espécie, sim, da natureza. Agora a essência da natureza deve expressar-se por via simbólica; um novo mundo de símbolos se faz necessário, todo o simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos . Então crescem as outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia. Para captar esse desencadeamento simultâneo de todas as forças simbólicas, o homem já deve ter arribado ao nível de desprendimento de si próprio que deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças : o servidor ditirâmbico de Dionísio só é portanto entendido por seus iguais! Com que assombro devia mirá-lo o grego apolíneo! Com um assombro que era tanto maior quanto em seu íntimo se lhe misturava o temor de que, afinal, aquilo tudo não lhe era na realidade tão estranho, que sua consciência apolínea apenas lhe cobria como um véu esse mundo dionisíaco.


(NIETZSCHE, Friedrich W.. O nascimento da tragédia Trad. de: J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. P. 34-35.)

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