Confissões, Livro X: O encontro de Deus

 (...) Se perguntarmos a dois homens se querem alistar-se no exército, é possível que um responda que sim, outro que não. Porém, se eles perguntarem se querem ser felizes, ambos dizem logo, sem hesitação, que sim, que o interessa, porque tanto o que quer ser militar como o que não quer têm um só fim e vista: o ser feliz. Opte por um emprego, e outro por outro. Mas ambos são unânimes em quererem se felizes, como o seria também se perguntarem se queriam ter alegria. Ainda que um siga por um caminho e outro por outro, esforça-se por chegar a um só fim, que é alegrarem-se. Como ninguém pode dizer que não experimentou a alegria, encontre-a na memória e registre-a sempre que dela ouvimos falar.

Longe de mim, Senhor, longe do coração deste teu servo, que se confesse a Vós, o julgue-se feliz, seja com que alegria por. Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas só aqueles que desinteressadamente Vos servem: essa alegria sóis Vós.

Uma vida feliz consiste em nos alegrar em Vós, de Vós e pro Vós. Eis uma vida feliz, e não há outra. Os que julgam que existe outra apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, a sua vontade jamais se afastará de alguma imagem de alegria...

Poderemos então concluir que nem todo mundo quer ser feliz porque há alguns que não querem alegrar-se em você, que sois a única vida feliz? Não; todos querem uma vida feliz. Mas como "a carne combate contra o espírito e o espírito contra a carne, muitos não fazem o que querem, mas entregam-se àquilo que podem fazer. Com isso se contentam, porque aquilo que não podem realizar, não o querem com a vontade quanta é necessário para o podermos fazer.

Pergunto a todos se preferir encontrar a alegria na verdade ou na falsidade. Todos são categóricos em afirmar que a saber na verdade, como em dizer que deseja ser feliz. Uma vida feliz é uma alegria que prova a verdade. Tal é a que brota de Vós, ó Deus, que sois "a minha luz, a felicidade do meu rosto" e o meu Deus. Todos querem esta vida feliz. (...)

(...) é assim também a alma humana: cega, lânguida, torpe e indecente, procura ocultar-se e não quer que nada lhe fique oculto. (...) Apesar de estar tão infeliz, antes de querer encontrar a alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Será feliz quando, liberta de todas as moléstias, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.

(...) Quando estiver unido a Vós com todo o meu ser, em parte não sentirei dor e trabalho. A minha vida será então verdadeiramente viva, porque será toda cheia de Vós. Libertais do seu peso aqueles que encheis. Porque ainda não estou cheio de Vós, ainda sou peso para mim.

AGOSTINHO, Confissões, Livro X: O encontro de Deus, trad. de J. Oliveira Santos, SJ, e A. Ambrósio de Pina, SJ, São Paulo: Editora Abril, 1973. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

XIII - Eu não consigo parar de morrer